quarta-feira, 14 de junho de 2017

Textos Publicados 2017 - 36 (N.º 491 - Ano III)


Conceição do Mato Dentro. Foto: Francisco Ferreira.

Tempos Difíceis



Sou de um tempo e de um local em que nossas mães e avós se sentavam nas calçadas, enquanto brincávamos na rua e trocavam receitas, orações, simpatias e colocavam as conversas em dia, ainda que não tivessem mais do que o cotidiano para falar. Seus maridos – e invariavelmente elas tinham maridos, excetuando-se um ou outro caso de viuvez – depois do trabalho, passavam na venda para conversar com seus pares e regar a vida com umas doses. Mas, era de praxe que trouxessem cada um, o seu embrulho de pães. Naquela época ainda não se havia criado o mau hábito das sacolas plásticas. O pão era enrolado no famoso “papel de pão” e amarrado com barbante.   Além do pão, traziam a sua presença, o seu olhar severo e protetor e, assim que chegavam, entrávamos e as ruas ficavam livres para o trânsito dos fantasmas. Raras eram as casas em que havia aparelhos de TV e, portanto, nossa diversão eram as brincadeiras nas ruas: queimada, cantigas de roda. E, em casa, a conversa respeitosa com os pais, o rádio de pilhas e o aconchego familiar. Vivíamos saudáveis de corpo e mente, gozávamos de liberdade – bem vigiada, é claro – e éramos simples e felizes.

Sou de uma época em que se respeitava os outros, em que se acolhia de bom grado os conselhos e reprimendas de quem quer que fosse, desde que tivesse mais idade. Em que se pedia licença, se agradecia, se cumprimentava, se chamava de senhor e senhora. As professoras eram Donas Fulanas, nada de tia e você. Não se tinha materiais diferenciados, cada um mais caro e luxuoso do que o outro, incentivando o consumismo precoce e a divisão de classes. Brigas eram comuns, mas sempre entre duas pessoas, não era admissível os massacres que se vêm hoje, quando grupos espancam um único indivíduo. Formava-se a roda em volta dos contendores e, caso a briga “esfriasse” por qualquer motivo, pegavam-se duas pedras e as colocavam perto do pé de cada um e um gaiato qualquer dizia:

− Esta pedra é sua mãe, fulano e aquela outra é a mãe de cicrano. Quem for mais homem pise na mãe do outro.

E a briga refervia. Mas, no dia seguinte, exceto por algum olho roxo e a moral arranhada, estávamos todos em paz e prontos para novas traquinagens. Embora todo o mundo tivesse um canivete ou uma faquinha – que sempre tinha nome de mulher, ou, simplesmente “o faínho” -, ninguém os usava para ferir o outro. Era algo que nos dava a falsa garantia de proteção e infalibilidade.

Nasci em um tempo que ainda se cria na justiça – dos homens e divina -, em que ladrões eram uma raridade e, normalmente, pagavam seus crimes na cadeia. Não eram tatuados e ninguém, em sã consciência diria que “bandido bom é bandido morto”. Em que “careta” era usar drogas e todos conheciam os usuários e os evitavam. Em que o amor e o sexo eram coisas distintas e “se desonrasse, tinha de casar”. Em que a família vinha sempre em primeiríssimo lugar.

Eram tempos difíceis, severos e de pais severíssimos. A liberdade era codificada de acordo com os dogmas de cada família. Mas, entre as casas havia uma cerca viva ou de bambus e todo mundo respeitava o quintal de todo mundo. Não havia muros, nem grades e nem portas e janelas fechadas diuturnamente. Não dávamos trabalho para a polícia, as agências bancárias e dos correios funcionavam em prédios comuns, quase residenciais. Os poucos carros ficavam estacionados nas portas das casas, destrancados e com a chave na ignição. Bicicletas amanheciam esquecidas na rua, qualquer criança acima de cinco anos podia ir à venda e voltar em segurança. Erámos simplesmente felizes.

Publicação semanal em minha coluna fixa FIEL DA BALANÇA no blog OCEANO NOTURNO DE LETRAS, Rio de Janeiro (RJ), em 13/6/17.

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